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A Dimensão Erótica da Humildade

Writer's picture: Csongor JuhosCsongor Juhos

Por Vania Baldi


Um caro amigo tinha acabado de ler um livro do escritor italiano Adriano Sofri, tratava-se de uma recolha de histórias sobre companheiros de cadeia que conhecera durante a sua experiência de detenção. Pegando no livro achei curioso o livro estar sublinhado e com apontamentos nas margens do texto. Eram contos, mas inspirados por pessoas que se defrontavam com a privação coagida de liberdade e que faziam exercícios quotidianos, mal ou bem-sucedidos, de contenção das próprias esperanças, desilusões e carências.


Algumas personagens destacavam-se pela pacata lucidez sobre a própria condição, como se o destino estivesse a cumprir o seu papel. Todavia, os comportamentos e as confissões relatadas testemunhavam a busca dum gancho vital, a necessidade de uma compensação à solidão, a falta de uma ponte para o exterior. O olhar do escritor recuperava tais estados psicológicos através daqueles detalhes que mais revelavam a procura de sub-rogados de presenças. Uma destas histórias, realçada a lápis no livro e indicada a margem com a palavra “pêlos”, chamou-me a atenção como se fosse um link num texto hipertextual. Remetia para a história de um casal que cultivava a sua intimidade comunicando por cartas que guardavam pelos púbicos colados por trás dos selos. Era uma imagem triste e poderosa ao mesmo tempo, a partilha de um código secreto, os pelos escondidos, para suprir o desejo de proximidade entre amantes forçosamente separados. Ainda não existia o direito à sexualidade para os detidos. O meu amigo perspetivava isto como algo romântico, eu sentia-o mais como a necessidade de um símbolo de união, de um recurso que sustentasse a vida isolada e parada no tempo, a confirmação salvífica de um vínculo concreto com alguém lá fora, traduzido, neste caso, num rasto de corporeidade.



Pensando nesta história dou-me conta, agora que o confinamento é uma condição partilhada por muitos, da ternura presente nesta troca de mensagens encriptadas, da ferida e da fragilidade que mobilizava esta forma de cumplicidade, mas também da criatividade que a suportava e da leveza que deveria proporcionar. Naquele contexto de clausura e distância ineludível, sentir uma ligação viva com alguém lá fora significava sentir o calor de uma promessa, algo que devia tornar mais vitais os pensamentos e projetos sobre o amanhã. O sentido deste alívio materializava-se num símbolo erótico.


Aqui não vale a pena incomodar as várias facetas do potencial fetichístico, apenas salientar a força vital representada por um erotismo sublimado. O aspeto interessante é o efeito comovedor desta história, uma vez que o que nela mexe e cria ressonância (commovēre, pôr em movimento as emoções), é o processo de busca de reciprocidade e, a seguir, o seu reconhecimento que a confirma e repara.


A lembrança deste texto, aliás, da história trazida pelo texto literário, veio-me à memória depois de ter-me deparado com um artigo sobre as estratégias de marketing na era do SARS-CoV-2. Enquanto fazia um levantamento sobre as novas tendências de consumo e práticas comerciais na fase da mundialização da quarentena, cruzei-me com um caso de sucesso. Uma empresa produtora e distribuidora de sex toys tinha, em poucas semanas, aumentado as vendas em 40%, mas dum tipo particular de gadget erótico, algo que representa uma nova etapa no imaginário da experiência sexual, o “tele-dildonismo” (teledildonic devices). Casais separados, mas sexualmente conectados. Vibradores acionáveis à distância, como drones, acoplamentos remotos, copulações “sem fio”, a Internet da coisa… Descubro que estas soluções pós-orgânicas do sexo já existiam há um tempo, que não é uma rápida resposta ao isolamento causado pelo vírus, já existia esta smart… (intimidade?). Todavia, é agora que a sua notoriedade parece propagar-se e ganhar destaque pela comunicação social.


App, Bluethooth, WiFi, Smartphone e sex toys interligados determinam, assim, novos cenários para promover a potencialidade do contacto físico sem tato, sem sensorialidade nem símbolos que possam reconduzir a um sentimento de exclusividade (contactless delivery, contactless payment, contactless thermometer e, finalmente, contactless sex). A panóplia de funcionalidades e convergências tecnológicas associadas a estes brinquedos do sexo é surpreendente (assim como o vocabulário promocional utilizado). Foram projetados para responderem também aos constrangimentos dos fusos horários, facultando uma sexualidade assíncrona, faseada e ainda menos partilhada, sendo esta possibilitada pela gravação e o arquivo do ato sexual, dum dos parceiros com o objeto interconectado, na cloud partilhada, para assim poder ser rematada num outro momento pelo outro parceiro com o brinquedo emparelhado. Novas formas de beata solitudo, in streaming.


Apesar de ter referido duas experiências diversamente hiperbólicas de alguns reagirem à solidão forçada, observa-se como tais situações extremas podem ser emblemáticas de quanto os outros nos sejam necessários, revelando, ao mesmo tempo, modelos culturais alternativos de significarmos as relações no geral, e não apenas as íntimas e interpessoais. Agora, se no primeiro caso, o da detenção carcerária, a escassez de meios e a pobreza do contexto determina uma protensão para um símbolo de sodalício que origine esperança, no segundo caso, o da distância contingente, encontramos o aproveitamento de um recurso externo pronto para o uso. A primeira experiência assenta na dimensão simbólica, a segunda no funcionalismo. Ambas, ao enfrentar a angústia do desconhecido revelam um lado humano, o primeiro emerge pela ausência criadora de desejos e horizontes de expetativas, o segundo pela oferta do mercado gerador de respostas hiperativas e aparentemente autossuficientes. São duas narrativas cuja semântica espelha e envolve uma maior ou menor emocionalidade, uma maior ou menor ludicidade, uma experiência mais ou menos direta com a própria autonomia e capacidade de procurar e originar sentido. Dentro desta polaridade, paradoxalmente, podem estar guardadas atitudes mais ou menos promissoras para uma renovada experiência social pós-quarentena.


A polaridade exposta entre estas duas formas peculiares de reagir aos diversos isolamentos, de cariz punitivo ou preventivo, serve, portanto, como pretexto para introduzir termos de comparação com a nossa maneira de sentir atualmente a suspensão da rotina e, por contraste, a nossa relação com a mesma. Sabe-se que o distanciamento social provocado pela SARS-CoV-2 não separa todos da mesma forma.


Existem famílias, casais, colegas que partilham o confinamento no mesmo espaço habitacional, assim como há quem nem tem espaço habitacional. Porém, as experiências acima mencionadas servem como prismas sobre algumas modalidades de encarar o mundo interno e externo. De facto, nos demais contextos pode-se reagir aos intervalos de sentido e sentimentos de falta aos quais estamos expostos articulando e modulando plasticamente as instâncias de compensação ou extraviando estas para objetos ou processos substitutivos, visando apagar ou desviar o impasse. Entre uma sublimação que permite estabelecer laços conectivos com o exterior e uma reatividade assente numa delegação que isola e desconecta.


Neste sentido, podemo-nos perguntar: o que nos mobiliza no dia a dia é uma aspiração a integrar algo mais abrangente ou a hipertensão focada no imediato perpétuo? A vida em comum regula-se pela solidariedade entre estresses ou entre aberturas de horizontes?


Numa condição de confinamento obrigatório, como a atual, podemos ter a sensação que as nossas atitudes oscilem nesta polaridade. Por um lado, procurar uma nova senda sociocultural que desperte novas ambições ético-estéticas e alavanque para novas possibilidades políticas, por outro reafirmar (ou esperar de reafirmar) o que já se conhece por estar já alinhavado, apesar da sua finalidade parecer míope ou tautológica. Lavrar o futuro buscando novas finalidades para as próprias ações fomenta uma ética pela qual considera-se errado querer repetir e continuar o estado de coisas anterior (como um aprisionado provavelmente almeja para o seu futuro), contrariando assim aquela outra ética alimentada pela lógica da eficiência dos objetivos e dos resultados já preestabelecidos, alcançados pela repetição de diretrizes cujas razões e origens são inquestionadas como leis da natureza e cujas finalidades justificam-se autotelicamente.

Estamos assim numa hesitação que se revela ética e política a um tempo. Entre a experiência designada por alguns filósofos de “interpassividade”, como a do teledildonismo, e aquela da busca de uma resposta que não se conhece, mas que motiva uma cognição mais simbólica e uma compensação mais humilde (um pêlo escondido).


Interpassividade, por exemplo, pode significar o facto de o objeto ocupar o lugar do sujeito na ação. O sujeito fica numa posição passiva em relação a si mesmo; em vez de interagir com o meio, deixa que o meio, o objeto, faça por si. Muitas práticas digitais assentam neste molde cultural, mas na realidade pode-se afirmar como este represente uma condição cultural mais abrangente, na qual a manifestação da subjetividade é delegada aos substitutos sígnicos, suplementos técnicos ou indicadores numéricos.


Entregar aos “representantes” ofertados pelo mercado a significação de uma qualidade subjetiva, deixar que estes falem por nós, como no caso dos brinquedos eróticos, pois eles atuariam e notificariam por nós. Apesar do aumento das suas vendas ter subido 40% em uma fase de confinamento social, e das ocasiões jocosas que naturalmente pode proporcionar, é de admirar a rapidez da sua propagação e incorporação social, evidentemente existia já um terreno fértil disponível, provavelmente as sensibilidades individuais e os projetos coletivos tinham-se já projetado e deslocado nos funcionamentos dos aparatos, tinham já migrado para dentro das suas inteligências que, por sua vez, nos permitem crer na nossa. Como se o mundo, antes do confinamento, fosse já caraterizado por muitas bolhas de isolamento.


Nestes momentos de interrupção da rotina compreende-se o quão é desconfortável não poder insistir na repetição das nossas atividades quotidianas, pois é percetível quanto isto insufle uma sensação de controle sobre o tempo. Ao cair no tempo informe da incerteza e da suspensão torna-se necessário simbolizá-lo, dar-lhe uma direção, sente-se maiormente a responsabilidade sobre aquilo em que se pode agir. Neste sentido, o exemplo prisional revela o que falta aos que aparentam gerir livremente o seu destino: re-imaginar o tempo, dar-lhe uma finalidade, dilatá-lo e não reduzi-lo ao mero movimento pelo movimento.


Esperar, augurar, auspiciar são todos verbos da passividade, remontam à fábula judaico-cristã do otimismo temporal que permeia a cultura ocidental, a ciência, a psicanálise o marxismo, todos encaram o passado como a ignorância (o trauma, a injustiça), o presente como remédio que emenda através da investigação (a terapia, a revolução) e o futuro que redime e salvará. O futuro, na realidade, pertence ao contingente, as três temporalidades não são nada lineares, as feridas da negatividade, precariedade e finitude são meta-históricas, razão pela qual os símbolos e as práticas do ter cuidado devem reinventar-se constantemente.


Desistir da hiperatividade arraigada ao receio do vazio, perceber o potencial emancipatório trazido pela experiência da falta sem a confundir com incapacidade ou moraliza-la como fosse uma culpa, remete para um impasse fecundo, desafia novas perguntas, até utopias, que podem desencadear maneiras alternativas de repensar o quotidiano, de exigir e idealizar novos símbolos para novos cenários pelos quais se possam expressar narrativas e projetos baseados no resgate da proximidade, onde por proximidade entende-se sentimento terrestre, consciência da finitude e vulnerabilidade.


Ser terrestres resgata a humildade, torna-a voluptuosa, permite experimentar combinações cognitivas e afetivas surpreendentes por estarem vinculadas à reciprocidade. A proximidade, configura-se como o pano de fundo de um mundo que não pode existir pensando ser possível separar as interdependências entre as espécies viventes, o mundo orgânico e o inorgânico. Do isolamento forçado poder-se-á sair, mas sabendo que a seguir poder-se-á ficar presos na mesma nas bolhas do pseudo-conforto ou que a liberdade garantida poderá ser exercida como presuntuosa rotura narcisística das interdependências.

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