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Doer o Coração Não é uma Metáfora


Por Filipa Costa Pereira, psicanalista e psicóloga clínica.

Lisboa, Portugal.





Pensei que doer o coração fosse uma metáfora bonita para as nossas dores e dissabores. Descobri que não. Descobri que o coração dói mesmo. O músculo. Quando a dor psíquica é insuportável o corpo dá nota. E faz vibrar cada tecido do músculo, percorrendo e excedendo a escala do que já se achou que era a medida suportável.


Já tinha passado por dores muito doidas, a morte de uma avó muito querida, a morte do meu pai há três anos, a morte de animais que, para mim, são família. Lutos tremendos. Mas, como fazer o luto de alguém vivo? Como fazer o luto de uma relação quando o corpo vivo do outro nos lembra, diariamente, que agora o luto não é uma contingência à qual nos temos de adaptar e sim uma escolha que queremos sustentar? Escolhi terminar uma relação de 41 anos, 34 de casamento e de vida diária conjunta.


Como sustentar a escolha quando está ao alcance da palavra regressarmos à relação? Mas regressar a quê? Regressar a uma repetição do que não queria, apesar de tudo o que queria na relação terminada. Gostava da vida que tinha, até que...Há sempre um “até que”. Ou quase sempre. Quando houve sintonia em muitos aspectos, é preciso muita consistência no desejo para seguir outro rumo.


Foi no trabalho de análise que consegui ter notícias sobre mim. Um outro que me escutou e com quem pude escutar-me. O que repetimos e a permanência em relações onde essa repetição se manifesta não é um simples querer ou uma opção. De facto, não nos vemos, não nos escutamos e permanecemos num emaranhado, connosco mesmos, que se manifesta nalgumas relações que mantemos. Como disso Lacan “não posso duvidar de que, mesmo ao me perder nisso, é aí que estou”. Não é quando queremos que tomamos decisões, é preciso escuta. Primeiro de um outro que nos devolve notícias nossas e só depois se torna possível ir conseguindo perceber a nossa participação naquilo que sofremos.


Na análise pude escutar o meu “Não mais!” Não mais uma relação e um lugar que deixou de me servir. Um medo tremendo, uma angústia colossal e uma decisão final anunciada. “Não mais. Terminou esta relação!”


O que mais doeu não foi o momento das malas à saída. Foram outros menos óbvios e para os quais não estava preparada, porque não há preparação possível. A cada um tocará de forma diferente a emergência daquilo que não sabemos dar conta. Que não conseguimos, pelo menos no imediato, simbolizar. Lacan chama de Real. A dimensão daquilo que cai, que é avassalador, inesperado, uma ruptura que gera intensa confusão, desamparo, angústia. Como lidar com isso? O indizível da perda que se vive e se apresenta. Para num só depois se começar a dar contorno a esse real, como aqui faço nesta partilha.


Houve alguns momentos mais agudos onde contactei com um desespero enlouquecido, não havia chão para pisar. Faltavam as referências para ter um olhar para o futuro, mas também para o passado. Até a narrativa do meu passado tinha lacunas. Coisa estranha, estranhíssima. Como naqueles filmes que incluem uma cena final que muda toda a leitura do filme. Temos de o rever todo num retrocesso que implica uma nova leitura. Uma cena que, retroactivamente, introduz um novo olhar. Um novo olhar que demora a ser colocado num novo texto narrativo.


O silêncio da casa, a retirada das muitas fotografias, o vazio dos objectos e as marcas nas paredes a tornarem a ausência presente. Vinha-me à memória, muitas vezes, o livro da Virgínia Woolf “A marca na parede”. Como uma marca numa parede pode trazer tanta reflexão e, para mim, trazia uma imensa dor. Uma testemunha marcante sobre o fim. Que lembra um espaço daquilo que já foi e já (ou ainda) não é.


A reorganização das tarefas funcionais foi o menos difícil. A dor estava em tudo que trazia o simbólico da perda. O assinar do papel do banco para o fecho da conta conjunta, o que se fecha nesse fecho? Um fecho de uma vida conjunta e a abertura de uma memória contrastante de um dia alegre, que originou a entrada numa agência para iniciar uma conta que dava conta de uma vida que escolhia ser partilhada. Prometi não chorar e, no entanto, as lágrimas irromperam. Há promessas para sermos fortes que são feitas em vão.


Depois é o sono que testemunha a angústia. Muito cansaço, muito sono e demasiados pensamentos para conseguir dormir. O corpo dói. Dói até ao coração, dói onde a literalidade da dor do coração faz pensar que, afinal, doer o coração não é, apenas, uma metáfora poética.


Durante um mês não consegui trabalhar. Eu, que costumo ser eclética na leitura, só conseguia ler sobre lutos. O livro de Joan Didion “O ano do pensamento mágico” foi o que mais me ajudou. A frase inicial “A vida muda rapidamente. A vida muda num instante. Sentas-te para jantar e a vida, tal como a conheces, termina” tocou-me no ponto certo. O ponto em que ficamos sem chão, em carne viva, numa fragilidade que precisa de abraços. Felizmente tive-os. E, de novo, recordo-me de uma frase de outro livro sobre o luto que li nesse primeiro mês "sentindo-me assim, esfolada, propensa ao choro, eu, que raramente choro" Tânia Ganho escreveu sobre o seu luto, mas parecia ter escrito esta frase para mim.


Pensei não conseguir regressar ao meu trabalho. Seria necessário mudar também esse rumo? Como continuar a escutar as pessoas quando dentro de mim tudo gritava? Como escutar um paciente queixar-se, repetidamente, do sal a mais no bacalhau nomeando este facto como desconsideração da sua mãe para consigo? Teria eu capacidade para escutar algo tão mundano quando o meu mundo se desmoronava?


Ao fim de um mês regressei, a medo. O compromisso comigo mesmo foi de ir vendo como me sentiria. Uma grande amiga deu um contributo imenso ao referir que o que construí por mim permaneceria, nem tudo vai com a corrente das perdas. Há o que fica. Aquilo que, em nós, é nosso. Indestrutível. E, foi com perplexidade que constatei que o meu sofrimento aguçou a minha sensibilidade ao sofrimento dos outros. Porque, na verdade, o bacalhau ter sal a mais, significa sofrimento. Um texto narrativo para que alguém possa manifestar o seu sentimento de desconsideração e percepção de falta de amor. Disse Lacan “Falar de amor, com efeito, não se faz outra coisa no discurso analítico.”.

Aprofundou, em mim, a escuta sobre a dificuldade que temos em sair de muitas das nossas demandas, tantas vezes impossíveis, das nossas repetições e de relações sofridas, assim como a dificuldade em sustentar os nossos desejos.


A paixão pela Psicanálise aumentou cimentada na minha vivência analítica de que um bom trabalho de análise traz a possibilidade de acedermos, com mais clareza, ao nosso sofrimento e ao desejo que se encontra alienado num determinado posicionamento pouco apreensível para nós mesmos.


Essa foi a primeira surpresa, o primeiro ganho na perda. Um fascínio, ainda maior, pela Psicanálise e um prazer redobrado a trabalhar.


O reinvestimento profissional foi decorrendo por efeito do trabalho de luto. Viver intensamente tudo o que sentia (e sinto) sem prazo, num tempo circular. Momentos de calmaria e prazer conviviam (e convivem) com outros de raiva, tristeza, confusão, choro. Onde é possível reinvestir o que fui naquela relação? Onde reinvestir o desejo? Esse é um reenvestimento libidinal que leva tempo. Eu, que não gosto de clichês, dei por mim a valorizar o cliché “dar tempo ao tempo”. É verdadeiro. É humano. Tem sensibilidade e aceitação do que dá,

quando dá.


Houve uma imagem que me surgia repetidamente. Uma imagem, bem divulgada, fractura e a dureza do asfalto, mas notar que algo resiste e renasce.


O que colocar nas molduras vazias? Sem pensar dei por mim a repescar fotografias da minha adolescência. Só uns dias depois, ao olhar para as mudanças na casa, pensei no significado daquela escolha. A adolescência como fase de reinvestimentos extra-familiares na progressiva separação do familiar, do até aí conhecido. A conquista do novo, de novos objectos e objectivos. O inconsciente sabe antes de nós. É esse saber, não sabido, que Lacan refere na riqueza do inconsciente.


Aliás, os pesadelos que partilhei na minha análise e que precederam a decisão da separação, testemunhavam esse saber, não sabido conscientemente. Sonhava com algo que, lentamente, me paralisava. Um sonho angustiante e repetitivo que terminou assim que se efectivou a separação. O inconsciente sabe antes de nós sabermos, confirmei na minha análise.


Agora, que já não estou carente de livros sobre lutos, luto por regressar àquilo que me permite reinventar a vida. A angústia vai dando lugar a retomar prazeres e a procurar o novo.


Do livro que li recentemente, trago algumas frases que Clarice Lispector escreveu no livro “Água Viva”


Mas arrisco, vivo arriscando. Estou cheia de acácias balançando amarelas”


“Deixo-me acontecer”


“Para onde vou? e a resposta é: Vou.”


Filipa Costa Pereira é psicanalista e licenciada e mestre em psicologia clínica pelo ISPA. Membro Fundador e Membro Titular da Associação de Psicanálise e psicoterapia psicanalítica- AP, onde é formadora responsável por seminários teóricos e clínicos.  É também Supervisora individual e em grupos de supervisão. Fundadora do Grupo de Estudos Lacaniano (2024) que promove Encontros anuais e Eventos mensais “À noite com Lacan”, cujo objectivo é aprofundar a teoria lacaniana tendo por base a reflexão sobre um filme debatido por um psicanalista convidado. Para além da paixão pela Psicanálise e por todos os amigos que daí advêm, o tempo é para dedicar a outras paixões, tais como a literatura, cinema, teatro, sol, praia e dias passados em boas companhias, humanas ou caninas.


Referência Bibliográficas:


Didion, J. (2017). O ano do pensamento mágico. Lisboa. Cultura editora.

(Original publicado em 2005).


Ganho,T. (2024). O meu pai voava. Lisboa. Dom Quixote.


Lacan, J. (2022). A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud.

In. Escritos. pp. 496-533. Rio de Janeiro: Zahar. (Texto original publicado em

1957).


Lacan, J. (1985) O seminário, livro 20: Mais, ainda [1972-73]. Rio de Janeiro.

Zahar. (Original publicado 1975).


Lispector, C. (2025). Água Viva. São Paulo. Companhia das letras. (original

publicado em 1973).


Woolf, V. (2024) A marca na parede. Lisboa. Relógio D’Água. (Original publicado

em 1917).

 
 
 

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